Brasil: Um Passo para Frente, Vários para Trás
No final de abril, minha última atividade com a Front Line Defenders foi acompanhar o defensor de direitos humanos (DDH) brasileiro e líder indígena Tonico Benites em Bruxelas. Tonico teve a oportunidade de reunir-se com vários tomadores de decisão e diplomatas para discutir sobre os desafios enfrentados por pessoas indígenas no Brasil, particularmente de seu grupo, os Guarani-Kaiowás. Como uma brasileira que vem de um estado que praticamente dizimou a sua população nativa, eu achava que já conhecia o quão difícil era a situação. No entanto, ouvir o relato em primeira mão de Tonico sobre a perseguição sofrida pelo seu povo foi chocante.
Antes de chegarmos a Bruxelas, Tonico havia passado aproximadamente um mês em Dublin em um programa de Descanso & Repouso para DDHs da Front Line Defenders. Antes de sua chegada, Tonico havia recebido uma mensagem de texto ameaçadora de um remetente desconhecido dizendo que ele sofreria terríveis consequências se continuasse mostrando “aquele vídeo”. A mensagem fazia uma clara referência a um vídeo que Tonico havia apresentado apenas alguns dias antes como evidência da violência enfrentada contra os povos indígenas no Brasil. Ele apresentou o vídeo perante a Comissão Parlamentar de Inquérito criada para investigar os assassinatos e a violência perpetrada contra indígenas no Brasil.
A intimidação contínua confirmou que o momento seria propício para que Tonico participasse do programa de Descanso & Repouso em um outro país.
Tonico passou um mês conosco na Irlanda se recuperando do seu trabalho incrivelmente estressante, melhorando seu inglês com aulas e ampliando a sua rede de apoio através de reuniões com ONGs, jornalistas e diplomatas.
Alguns dias antes de deixar Dublin e voltar ao Brasil, os/as companheiros/as DDHs de Tonico avisaram-no que a situação havia piorado. Logo após a suspensão da Presidenta Dilma Rousseff, o presidente interino indicou Blairo Maggi – um homem conhecido como o “Rei da Soja” – como o novo Ministro da Agricultura. O lobby do agronegócio no Brasil acolheu bem tal indicação, pois esta removeu vários obstáculos à expansão do agronegócio. Atualmente, defensores ambientais e dos direitos indígenas são a única grande força no caminho do agronegócio. Operações violentas de tomada de terras e ataques contra defensores/as dos direitos indígenas continuam.
Apesar de Tonico ser beneficiário do Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, ele não se sente seguro. O Programa Nacional não foi capaz de garantir a segurança de vários/as DDHs no Brasil, os/as quais têm uma forte e legítima noção das ameaças que enfrentam após três defensores dos direitos indígenas terem sido atacados e assassinados em 2015: Gilmar Alves da Silva, Adenilson da Silva e Eusébio Ka'apor.
Enquanto o Brasil enfrenta uma crise política e financeira em curso, o país deu vários passos para trás na proteção e promoção dos direitos humanos.
Como brasileira, sempre soube que os indígenas são um grupo bastante vulnerável no Brasil e que aqueles/as que defendem os direitos indígenas em meu país são rotineiramente perseguidos e brutalmente silenciados/as. Ao retornar ao Brasil em maio após completar o meu fellowship com a Front Line Defenders, percebi que a situação havia piorado.
A Front Line Defenders relatou recentemente que o Brasil lidera a lista de assassinatos de DDHs em 2016. Nos 4 primeiros meses do ano, pelo menos 24 DDHs foram mortos/as. A Front Line Defenders havia registrado 9 assassinatos de DDHs no Brasil para todo o ano de 2015.
Vários direitos arduamente conquistados e mecanismos de proteção para DDHs foram reduzidos ou eliminados.
A Secretaria de Direitos Humanos já não existe e o Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos não dispõe de recursos para promover proteção adequada. Há ainda uma falta de vontade política generalizada por parte dos políticos brasileiros para melhorar a situação dos direitos humanos.
Desde que a Presidenta Rousseff foi temporariamente suspensa e o Presidente interino Michel Temer chegou ao poder, o governo tem adotado várias decisões que têm causado um impacto negativo na proteção e promoção dos direitos humanos no país, e no trabalho dos DDHs. O Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos foi subordinado ao Ministério da Justiça como uma Secretaria, em uma demonstração clara de que os direitos humanos já não são uma prioridade. Afrodescendentes e defensoras de direitos humanos trabalhando contra a discriminação ficaram indignados/as ao ver o gabinete do Sr. Temer composto somente de homens brancos. Eles e elas têm lutado por muitos anos por igualdade, e o gabinete do presidente interino é um claro retrocesso.
Direitos econômicos, sociais e culturais também foram criticamente afetados na medida em que o governo subordinou o Ministério da Cultura ao Ministério da Educação como uma Secretaria – uma decisão que foi mais tarde revertida devido à pressão da sociedade civil. O governo também anunciou que irá reduzir os fundos destinados à moradia, à educação e ao combate à pobreza.
A situação dos defensores dos direitos indígenas, como Tonico Benites, é particularmente arriscada.
O extremista religioso e político de extrema direita, Pastor Everaldo, é um dos nomes cotados para assumir a presidência da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Pastor Everaldo apoia um grupo de congressistas conhecido como grupo BBB – a sigla para “boi, bala, bíblia”. Este grupo representa predominantemente grupos extremistas religiosos, fazendeiros poderosos e o agronegócio, nenhum dos quais estão interessados em garantir os direitos dos povos indígenas à autodeterminação e à terra. Ainda assim, essas são as pessoas que poderão estar a frente da FUNAI.
O grupo BBB está também por trás de vários projetos de lei polêmicos atualmente discutidos pelo legislativo. Dentre os projetos está uma lei que restringe o acesso ao aborto legal para vítimas de estupro, requerendo que tais vítimas sejam submetidas a um exame médico forense antes mesmo de procurar qualquer orientação médica. O grupo BBB também tem pressionado para a aprovação do “Estatuto da Família”, que define família como a união entre um homem e uma mulher, ignorando a decisão de 2011 do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a união civil para casais do mesmo sexo. Um projeto de lei sobre crimes cibernéticos também está sendo discutido e DDHs e organizações trabalhando em prol da liberdade de expressão acreditam que tal lei seria uma ferramenta para a censura online.
Muitos/as brasileiros/as têm assistido a tal retrocesso com perplexidade, sem saber exatamente como chegamos a tal ponto. A sociedade civil brasileira sempre foi reconhecida como bastante forte e ativa desde o processo de redemocratização no final dos anos 80 e de fato teve um papel predominante na conquista de vários direitos. Entretanto, a sociedade civil brasileira subestimou o poder da mudança conservadora entre políticos e diversos atores da própria sociedade civil.
Defensores/as de direitos humanos brasileiros, ativistas e ONGs perceberam que precisam lutar contra o retrocesso social com o mesmo afinco com o qual lutam por novas conquistas em matéria de direitos humanos. - Renata Oliveira
Nos anos recentes, diferentes ferramentas têm sido usadas como instrumento de pressão contra a sociedade civil e os/as DDHs, particularmente campanhas de difamação. O Brasil é um país onde ser um defensor ou uma defensora de direitos humanos pode ser considerado algo negativo. DDHs são comumente vistos como criminosos, ou como pessoas que apoiam atividades criminosas, como foi retratado em uma das novelas mais assistidas de 2015, que tinha como personagem principal um DDH/criminoso. O mesmo acontece com as feministas, que são retratadas como loucas e extremistas, comumente chamadas de “feminazis” nas redes sociais por defenderem os direitos das mulheres, a igualdade e os direitos reprodutivos. Líderes indígenas que também são defensores/as de direitos humanos são muitas vezes considerados/as legalmente incapazes, e grande parte da sociedade brasileira pressupõe que os povos indígenas não têm discernimento suficiente para buscar a concretização de seus direitos.
À medida que o Brasil se prepara para sediar os Jogos Olímpicos de Verão de 2016, enfrenta um processo de impeachment e uma contração econômica grave, tais eventos acabam ofuscando o trabalho dos DDHs e a persecução que estes ou estas sofrem. Mais do que nunca a sociedade civil e os/as DDHs brasileiros/as precisam lutar para que direitos arduamente conquistados não sejam eliminados. A comunidade internacional tem um papel importante a desempenhar na legitimação do trabalho dos DDHs, e na utilização dos eventos atuais no Brasil para atrair atenção para os assuntos que vêm sendo negligenciados localmente – mais especificamente os ataques a defensores/as de direitos humanos.