Difamação de autoridades contra pessoas defensoras de direitos humanos no Rio de Janeiro em represália por falar sobre abuso policial
Em 17 e 18 de setembro de 2019, várias intervenções policiais nas favelas de Jacaré, Complexo do Alemão, Complexo da Maré e Cidade de Deus resultaram no fechamento de escolas e negócios, na falta de acesso a transporte e serviços de saúde pública, em terror generalizado e em assassinatos. Estas são apenas as mais recentes de uma série de intervenções, muitas vezes violentas, que foram acompanhadas de difamação contra defensores e coletivos de direitos humanos, como o Papo Reto, que vêm trabalhando dentro das favelas do Rio de Janeiro para documentar e denunciar violações de direitos humanos resultantes de operações policiais e militares, e também para prestar assistência às famílias mais afetadas.
No dia 20 de setembro, a polícia militar atirou um fuzil e assassinou Agatha Félix, uma menina de 8 anos que estava dentro de uma kombi em Fazendinha, parte do Complexo do Alemão. Policiais afirmaram que estavam respondendo a um ataque, mas testemunhas oculares confirmaram que a única bala foi disparada por um policial militar. A menina morreu como resultado do tiro em uma unidade de saúde. Pessoas defensoras de direitos humanos e residentes das favelas protestaram contra sua morte e o aumento da brutalidade policial, enquanto autoridades governamentais como o governador Wilson Witzel, o presidente Bolsonaro e o ministro da Justiça Sergio Moro permaneceram em silêncio. No dia 22 de setembro, depois de grande pressão da sociedade civil, o Governo do Rio de Janeiro twittou sobre seu pesar por mortes inocentes e elogiou o trabalho da polícia.
Em 16 de agosto de 2019, o governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, culpou as pessoas defensoras de direitos humanos pelo aumento das mortes de residentes de favelas durante intervenções policiais em um discurso. O governador tentou responsabilizar as pessoas defensoras de direitos humanos que protestavam contra suas políticas pelo aumento da violência, sob o argumento de que estariam incitando membros de facções a não "temer" o Estado e a cometer crimes.
Esse discurso difamatório foi proferido em seguida a uma série de protestos por pessoas defensoras de direitos humanos e residentes de favelas contra o assassinato de pelo menos seis jovens entre 9 e 14 de agosto de 2019, como consequência de balas perdidas durante operações militares nas comunidades. Essas operações muitas vezes são realizadas com carros blindados e helicópteros com plataformas de tiro - estes últimos sendo usados na execução de 14 das 15 pessoas assassinadas no Complexo da Maré de janeiro a junho de 2019.
Grupos de crianças em idade escolar do Complexo da Maré, onde nasceu e cresceu a defensora de direitos humanos Marielle Franco, enviaram 1.500 cartas às autoridades descrevendo seu cotidiano militarizado e pediram ao Governo do Estado que deixasse de usar helicópteros nas operações.
Desde o início de 2019, defensores no Rio de Janeiro têm denunciado publicamente as violações de direitos humanos resultantes das operações policiais. O defensor de direitos humanos Raull Santiago, fundador do Coletivo Papo Reto, publicou imagens de sua família tentando encontrar abrigo durante as operações policiais com helicópteros em reação à campanha de difamação do governador. O defensor também afirmou que "um dia de operação deixa crianças sem aulas, idosos com saúde abalada, comércios fechados, pessoas desempregadas, todos com o psicológico destruído. Isso é morte também, só que sem precisar disparar fuzil, pois não se “ficará bem” amanhã.".
Pouco antes do discurso do governador, em 12 de agosto, foi publicado o relatório Direito à Segurança Pública da Maré, chamando a atenção para o aumento das violações de direitos humanos diretamente causadas pelas intervenções militares nas favelas da Maré. O número de pessoas assassinadas durante essas operações mais do que dobrou em 2019, em comparação com o ano anterior, assim como o número de dias em que estudantes ficaram sem aulas devido a paralisações escolares.
Em 19 de junho de 2019, uma decisão judicial que salvaguardava os direitos de residentes da favela da Maré foi anulada. Desde junho de 2017, pessoas moradoras da Maré tiveram políticas de redução de danos instituídas pela decisão judicial resultante de uma Ação Civil Pública. Ela incluiu consultas populares, câmeras de vídeo e áudio em veículos policiais, a disponibilidade de ambulâncias durante as operações e a execução de mandados apenas durante o dia. Apesar do não cumprimento integral dessas medidas, o número de assassinatos e paralisações escolares registrados pelas organizações de direitos humanos diminuiu após a "ACP" - de 47, em 2017, para 24, em 2018.
Autoridades do Rio de Janeiro têm desvirtuado o debate em torno da brutalidade policial e da violação de direitos humanos de residentes de favelas com declarações difamatórias contra defensoras e defensores de direitos humanos. Desde que o governo de Wilson Witzel tomou posse, houve um aumento no uso de difamação contra pessoas defensoras de direitos humanos em retaliação à denúncia da violência do Estado. De acordo com Luciano Bandeira, presidente da OAB-RJ, o discurso do governador é uma tentativa de transferir a responsabilidade pelos assassinatos resultantes de ações do Estado para defensores de direitos humanos.
As ações do governador são particularmente preocupantes, pois legitimam a violência policial no Rio de Janeiro, onde as forças de segurança já assassinaram mais de 194 pessoas de janeiro a junho de 2019, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP).
Front Line Defenders insta as autoridades estatais a reconhecer publicamente o papel positivo e legítimo das pessoas defensoras de direitos humanos em uma sociedade democrática, e a assegurar que funcionários públicos se abstenham de se envolver na estigmatização, nas campanhas de difamação e nos discursos de ódio contra pessoas defensoras de direitos humanos, e a desculpar-se publicamente quando o fazem. Front Line Defenders urge as autoridades do Brasil para que condenem as campanhas de difamação contra defensoras e defensores de direitos humanos que denunciam a brutalidade policial nas favelas do Rio de Janeiro, e pede às autoridades nacionais e estaduais que tomem medidas imediatas para garantir sua proteção.