Ouvir em línguas: o convite de uma defensora do Brasil
Há alguns anos atrás conheci o texto “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”1 de Glória Anzaldua. Incentivadora da escrita das mulheres, a estudiosa de teoria cultural chicana, feminista e lésbica convoca as mulheres do então chamado “terceiro mundo” a escrever e reconhece na escrita uma forma, a meu ver, de criação, sobrevivência.
Atendendo ao seu chamado, escrevo. Este é um diálogo com Anzaldua, uma carta em resposta à ela. Coloco em palavras algo que por meses acreditei ser individual e por isso, não merecedor de escrita, a não ser em meu inexistente diário pessoal. Quero aqui me dirigir às mulheres defensoras dos direitos humanos do sul global e também aqueles e aquelas que nos acolhem internacionalmente.
Descobrir-me defensora não foi fácil, apesar de ter uma atuação militante e concordar com os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Foi somente quando tive uma amiga defensora executada que percebi que, lutávamos pelas mesmas bandeiras. A vida dela foi tirada. Poderíamos estar juntas naquele carro no qual ela foi alvejada. Era comum as caronas, as conversas sobre a luta, a família, os amores, a vida. Naquele dia eu não estava lá. Naquele dia arrancaram Marielle Franco de nós.
Ainda atordoada, neguei aos outros e a mim mesma que precisava parar. Acolhendo conversas e conselhos decidi pedir uma licença de estudos para me aprofundar em direitos humanos. Somente assim, tendo um objetivo formativo é que me permiti desacelerar um pouco.
Como parte de minha formação fui acolhida por um programa Rest and Respite na Europa. Não foi fácil sair do país, mesmo que por um curto período, sabendo que todos ficaram. A sensação é de fuga, de falta de responsabilidade, quase covardia.
Prometi a mim mesma que multiplicaria aquela oportunidade, mas não sabia que seria tão difícil cumprir esta promessa sem dominar a língua inglesa. Em meu caso, em boa parte das atividades contei com o acompanhamento de uma pessoa da equipe que traduzia tudo para o espanhol. Apesar de ser brasileira, compreendo e falo razoavelmente bem espanhol, o que nem sempre é uma realidade em meu país. Mas ainda assim me perguntei diversas vezes: por que as pessoas na Europa não conversam em espanhol comigo? Elas não puderam aprender espanhol ou há uma naturalização de que todas e todos devemos falar inglês?
Apesar de todo o acolhimento e aprendizado riquíssimo que tive em minha experiência como defensora no exterior, não poder ser ouvida em português ou espanhol em uma significativa parte das minhas atividades foi um processo muito doloroso.
Tal dor ganha intensidade especial quando o que se tem a falar é algo traumático, como alguma violação sofrida pela própria defensora ou por alguém próximo, é mexer em feridas abertas. Neste cenário, acolhimento linguístico é fundamental. Poder falar em minha língua das minhas dores e medos não é algo secundário. Para caminhar no pântano do sofrimento das violações preciso dos meus pés firmes, das minhas raízes, da minha língua. É nesse momento que a possibilidade da tradução se torna um grande e necessário acolhimento.
Não discordo da importância de aprender outros idiomas, isto é riquíssimo: mas porque naturalizar a não tradução simultânea em vários espaços quando já temos tecnologia, recursos e/ou parcerias para isso?
Falar em cuidado e autocuidado é explicitar que grande parte das oportunidades, recursos e programas disponíveis aos defensores dos direitos humanos estão vinculados à hegemonia da língua inglesa. A maioria requer alguma compreensão de inglês ou, pelo menos, a disposição de agir como se não fosse um grande problema ser mal ouvida por três meses. A hegemonia da língua inglesa é ainda uma barreira que exclui e segrega defensores do sul global, em especial as mulheres que, por suas extensas jornadas de trabalho na maioria das vezes não tiveram oportunidade de estudar tal idioma.
Evoco aqui as palavras de bell hooks,2 autora negra que nos convida a transgredir:
Proponho que possamos aprender não só com os espaços de fala, mas também com os espaços de silêncio; que, no ato de ouvir pacientemente outra língua, possamos subverter a cultura do frenesi e do consumo capitalistas que exigem que todos os desejos sejam satisfeitos imediatamente; que possamos perturbar o imperialismo cultural segundo o qual só merece ser ouvido aquele que fala inglês padrão.
Este texto, mais que um diálogo com Anzaldua a quem sigo respondendo e agradecendo por seu convite à escrita, é um convite. Que possamos ouvir em línguas! Todas as línguas! Este deve, a meu ver, ser um compromisso de todas e todos. E seguindo com bell hooks,3 compreendo a importância de publicar este artigo em inglês, pois ainda que esta seja a língua do opressor, preciso dela para falar com você.
1 ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas. Vol.8, n.1, Florianópolis, 2000.
2 hooks,bell. Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,2013.
3 Idem